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Pescadora de dados
Quando recebeu nossa ligação para uma entrevista, Francyne Vieira tinha acabado de entrar de férias, e já estava novamente na beira do mar. “O ambiente aqui está bem propício para a conversa”, brincou. Ainda que tenha nascido e crescido em Campinas, no interior de São Paulo, o oceano sempre esteve em sua vida: a família é de Santa Catarina – onde estava no momento da ligação – e ela não lembra de algum verão que tenha passado sem os pés na areia. “Minha atração pelo mar vem da infância”, diz.
Isso nunca mudou. Às vésperas do vestibular, abriu uma revista e descobriu que existia uma profissão voltada para pesquisas no oceano. Quando levantou os olhos das páginas, já não tinha mais dúvidas sobre a faculdade que iria cursar. Pegou suas coisas e com 17 anos de idade mudou-se para o município de Rio Grande, no estado mais ao sul do país. Entrou para o curso de Oceanologia da Universidade Federal de Rio Grande (FURG) e não quis saber mais de outra coisa. “Quando as aulas começaram eu soube que era aquilo mesmo que eu queria fazer da vida”.
Dito e feito. Atualmente morando no Rio de Janeiro, já faz mais de dez anos que Francyne trabalha na Fundação Instituto de Pesca do Estado do Rio de Janeiro (FIPERJ), um órgão vinculado à Secretaria de Pesca fluminense. Neste período, aproximou-se do setor pesqueiro e vivenciou com ele altos e baixos. Como o vazamento de óleo da empresa Chevron, que ocorreu em 2011 na Bacia de Campos.
Na época, Francyne acompanhava as atividades pesqueiras no município de São João da Barra e viu de perto os impactos nas comunidades locais. Hoje, porém, já consegue carregar outras memórias do episódio: alguns anos depois do acidente, a empresa assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) e destinou recursos a projetos de pesquisa na região.
Uma parte deste montante foi para iniciativas voltadas à pesquisa da sardinha-verdadeira, um dos principais recursos pesqueiros do país. Em 2016, o telefone de Francyne tocou e ela foi convidada a integrar a Câmara Técnica que escreveria os editais e acompanharia os projetos selecionados.
“Eu nunca tinha feito editais ou julgado projetos”, diz. Mas ela resolveu encarar o desafio. Afinal, experiência com o setor de pesca ela tinha de sobra. Com um time de especialistas, identificou o que deveria ser prioritário nas pesquisas com a sardinha-verdadeira e colocou de pé o edital. “Discutimos o que era mais relevante para a espécie, e a ideia era que os projetos cobrissem as demandas de pesquisa que não estavam acontecendo”.
Foi assim que a Câmara Técnica aprovou as iniciativas – Uma abordagem multidisciplinar sobre a sardinha-verdadeira e o Projeto Sardinha: Apoio técnico-científico ao Plano de Gestão para o uso sustentável da sardinha-verdadeira no sudeste do Brasil. Liderado pela Fundação de Apoio à Universidade de Rio Grande, o Multisar propôs um cruzeiro científico inteiro voltado para estudos da sardinha-verdadeira. O outro trabalho é coordenado pela Fundação Universidade do Vale do Itajaí. Entre seus objetivos, está o diagnóstico da pesca de cerco e o entendimento de como anda a captura da espécie para uso como isca.
“O edital previa um montante de recursos que não é comum para pesquisas. Era como um oásis no meio do deserto. Tínhamos que aproveitar essa oportunidade para conseguir superar gargalos que projetos menores não davam conta de responder”, explica a oceanógrafa.
Ainda acompanhando pela Câmara Técnica os trabalhos selecionados, Francyne se diz satisfeita com as escolhas feitas. “Acho que na última década não houve projetos tão abrangentes, que respondessem a tantas lacunas de informações sobre a sardinha-verdadeira”, afirma.
Monitoramento da pesca
Preencher lacunas, aliás, tem sido uma constante na vida profissional de Francyne. Na época da faculdade, quando fez sua monografia sobre a influência de eventos climáticos na pesca, se deparou com um amplo banco de dados sobre produção pesqueira do município de Rio Grande (RS). A sequência histórica de informações era fruto de um monitoramento feito há décadas, e ela ficou impressionada com aquilo.
Quando mudou-se para o Rio de Janeiro, ficou decepcionada ao perceber que o estado tinha um grande vazio de informações sobre seu setor pesqueiro. Prometeu a si mesma que não sairia dali antes de levantar um banco de dados robusto sobre a pesca fluminense.
“A gente liga a TV e são várias notícias sobre a produção de soja, de carne bovina, da taxa de desemprego. Por que também não vemos dados da produção pesqueira? Quanto de peixe, molusco, crustáceo o país produz? Como é a safra das espécies, a dinâmica das pescarias? São estatísticas que ajudam a entender o setor e auxiliam na construção de leis e de políticas públicas”, argumenta. “Então comecei a correr atrás de financiamento”.
Ainda em 2008, conseguiu recursos do governo federal e, pela primeira vez, a FIPERJ iniciou o monitoramento das atividades pesqueiras nos 5 principais municípios produtores de pescado do Rio de Janeiro. Ao longo dos nove anos seguintes, o número chegou a 15 municípios e despencou novamente para zero: as incertezas de recursos nunca mantiveram um levantamento regular no estado.
Os bons ventos voltaram a soprar em 2017, quando o Projeto de Apoio à Pesquisa Marinha e Pesqueira – fruto do mesmo acidente da Chevron – aprovou uma iniciativa coordenada hoje por Francyne, que contempla o monitoramento de 7 municípios do Norte Fluminense. Somado a outros projetos aprovados em andamento, a FIPERJ hoje produz estatísticas pesqueiras de 22 municípios em todo o litoral do estado. Um fato inédito na história fluminense.
“Esses dois anos que passaram são os únicos que temos um acompanhamento tão completo e tão abrangente sobre as atividades de pesca no estado”, diz a oceanógrafa. “Fazemos esse trabalho acompanhando diariamente os pescadores, que são os produtores do mar. Hoje temos uma noção de quanto se produz, quanto é gerado de renda e quantos pescadores são responsáveis por isso”, afirma.
Com o celular na mão e os olhos n’água, ela se despede da entrevista para voltar ao descanso das férias. Sabe que no retorno ao trabalho, ainda tem muito caminho pela frente. “Vamos continuar construindo nossa série histórica. Por enquanto temos apenas dois anos”, diz. “Mas quem sabe um dia a gente chega a uma década de monitoramento?”.
Texto originalmente produzido pelo jornalista Bernardo Camara para a newsletter “Linhas do Mar” para divulgação do Projeto de Apoio à Pesquisa Marinha e Pesqueira e do Projeto Conservação da Toninha.