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Devoto da ciência: conheça Francisco Gerson, seis décadas dedicadas ao estudo do mar
“Atingi o ápice da minha carreira”. As palavras saem da boca do cearense Francisco Gerson Araújo, mas ele não é o único a dizer isto: professor titular da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), o engenheiro de pesca e oceanógrafo é considerado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) e pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) um dos pesquisadores mais produtivos do Brasil. À frente do projeto Análise Química de Otólitos, Francisco chegou aos 66 anos de idade com quase quatro décadas de academia e uma cabeça fervilhando de ideias.
“Gosto tanto do que faço, são tantas coisas que ainda quero fazer. Um pesquisador em atividade, como eu, não perde o objetivo de aprimorar e aprofundar cada vez mais as pesquisas em sua área de conhecimento”, diz.
E é o que ele sempre fez. Nascido e criado no pequeno município de Massapê, às margens do segundo maior rio do Ceará, o Acaraú, Francisco Gerson passou a vida sendo impulsionado pela sede de conhecimento. Depois que se formou em Engenharia de Pesca, na Universidade Federal do Ceará (UFCE), em 1976, cruzou o país e começou a dar aulas na UFRRJ com apenas 27 anos de idade. Já carregava no peito o sonho de ser pesquisador. “Mas na época a pesquisa ainda era muito rudimentar no país, e limitada a poucas universidades”, diz.
Obstáculos para ele são desafios. Começou a correr atrás de bolsas científicas e tirava os alunos da sala de aula para fazer coletas no rio Paraíba, na Baía de Sepetiba e em um grande reservatório, que hoje pertence à Light, próximo à universidade. Na década de 1980, deixou os alunos com saudade em alguns períodos: fez Mestrado em Oceanografia Biológica na Universidade Federal do Rio Grande (FURG), pioneira na área, e deixou temporariamente o Brasil para se tornar doutor na University of London.
Foi após essa fase de imersão em grandes centros de pesquisa que ele fez brotar no campus da Rural do Rio de Janeiro um dos maiores e mais resistentes frutos da sua carreira. Conseguiu captar recursos, ergueu um laboratório de dois andares e inaugurou a área de Ictiologia na UFRRJ. “Quando voltei, deslanchamos. A universidade era conhecida só pela piscicultura, e com muitas limitações. Passamos a fazer parte da Sociedade Brasileira de Ictiologia – que engloba todo mundo que trabalha na área – e o laboratório hoje é reconhecido por suas publicações e pela produção dos alunos”, conta.
Inovação
As atividades ali não param. Dividido em três áreas, o laboratório aponta suas lentes para pesquisas em sistemas costeiros, rios e represas, sempre buscando abordagens inovadoras. Como é o caso do projeto Análise Química de otólitos, que parte de uma pequena estrutura presente nos ouvidos dos peixes para entender seus movimentos ao longo da vida e a qualidade ambiental dos locais por onde ele passou.
“Consolidamos uma frente nova de pesquisa de química com otólitos no laboratório. É uma técnica moderna, que exige aparelhos específicos e raros no Brasil”, diz. Acostumado a quebrar barreiras, Francisco Gerson e sua equipe importaram o equipamento e já conseguem fazer uma análise muito mais precisa das amostras.
A ‘caixa preta’ dos peixes traz informações que podem ser surpreendentes. Num comparativo com dados sobre poluição da Baía de Sepetiba na década de 1980, os pesquisadores notaram que os registros de metais pesados nos otólitos do bagre apontam hoje níveis menores de contaminação que naquela época. “A região ainda tem um desenvolvimento industrial enorme, mas essas informações reforçam que medidas de fiscalização e controle têm sua importância”, diz.
As corvinas também trouxeram novidades. O time descobriu que a movimentação da espécie não segue um padrão único ao longo do ciclo de vida. Antes, acreditava-se que as corvinas cresciam dentro de estuários, baías e lagoas – locais mais protegidos de grandes predadores – e saíam para se reproduzir no mar. Seus otólitos, porém, mostraram que há grupos de indivíduos que se movimentam com muito mais frequência entre os ambientes de água doce e salgada. E ainda existem alguns grupos que nunca saíram do mar. “Na hora de fazer políticas de conservação, é fundamental conhecer as rotas dos peixes para saber quais áreas são mais importantes para proteção”, explica o professor.
E ele sabe que o conhecimento não está apenas dentro dos laboratórios. Numa frente complementar, o projeto também realizou mais de 200 entrevistas em colônias de pescadores nas baías de Sepetiba e Ilha Grande, levantando ainda mais informações sobre as espécies e os ambientes estudados. Dos questionários, surgiu a notícia da existência de um grupo de tainhas que vive em uma área hoje restrita a uso militar em Sepetiba. E que, ao contrário do padrão esperado da espécie, elas desovam durante o verão.
“Às vezes os pescadores sabem de coisas que a ciência ainda não notou. A tainha tem um período bem definido de desova: ela ocorre durante o inverno, podendo se estender até julho. Se os pescadores dizem que existe uma população de tainha no Sudeste que desova no verão, é importantíssimo que a gente investigue isso”, afirma Francisco.
O professor ressalta que toda informação científica é valiosa para guiar as ações de órgãos ambientais e de gestão pesqueira. Para ele, ciência deve andar de mãos dadas com a sociedade civil e com as políticas públicas. “Existe um não desejado descompasso entre as pesquisas produzidas nas universidades e a gestão pública. Mas acredito que aos poucos estamos evoluindo para uma maior aproximação e entendimento entre esses setores”, diz o pesquisador.
É o que ele busca fazer há quase 50 anos, acreditando que de pouquinho em pouquinho as coisas vão melhorando. “A gente não vive isolado. Cada pesquisador dá sua contribuição. E a ciência é feita justamente disso: de várias pequenas contribuições”.