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Ciência é palavra feminina
Quando a Secretária-geral do FUNBIO, Rosa Lemos e Sá, teve a ideia de criar um programa para financiar o trabalho de campo de jovens pesquisadores, ela trazia como inspiração sua própria jornada, enquanto bióloga, e os desafios que enfrentou para ir a campo, no seu caso, para estudar os muriquis, o maior primata das Américas. Assim nasceu, em 2018, o Programa Bolsas FUNBIO – Conservando o Futuro. Desde então, já foram 186 pesquisas beneficiadas, sendo mais da metade liderada por mulheres. Ao todo, 104 mulheres, mestrandas e doutorandas, de todas as regiões do Brasil puderam ir a campo com o recurso da iniciativa trazer informações que contribuem com a ciência e com a conservação da biodiversidade.
Em seu trabalho na ciência, além de superar os obstáculos naturais de uma pesquisa científica, muitas mulheres infelizmente também precisam enfrentar situações de machismo, sendo subestimadas por seus pares homens, questionadas e até mesmo vítimas de assédio, sexual e moral.
“Um dos piores desafios é quando você faz parte de um grupo de pesquisa, liderado estritamente por homens, e eles começam a ‘questionar’ ou até mesmo tentar invalidar suas ideias, suas falas, você mesma…”, desabafa a bióloga Ana Maria Quirino, bolsista selecionada em 2022 pelo programa Bolsas FUNBIO – Conservando o Futuro.
Apesar dos obstáculos, a pesquisadora reconhece que há um esforço crescente para criar ambientes mais inclusivos e apoiar as mulheres na ciência, como mentorias e políticas de igualdade de gênero.
E quanto mais mulheres avançam na carreira acadêmica, mais se inspiram a seguir seus passos, destaca Ana Maria. “A minha decisão de cursar biologia veio da inspiração da minha professora do ensino médio, Goretti Veras. Com ela, aprendi que a Biologia vai além das teorias, que é principalmente conhecer o ambiente que está inserido, tentar entendê-lo e contribuir com algo”, lembra.
A lição ficou para a vida e hoje a pesquisadora busca compreender formas de proteger a Caatinga, bioma de Iguaracy, município em que nasceu, no interior de Pernambuco. Para isso, Ana Maria estuda os efeitos da invasão de uma gramínea originária da África, conhecida popularmente como capim-colonião (Megathyrsus maximus) em plantas e comunidades de artrópodes (como baratas, aranhas e escorpiões) na Caatinga. No doutorado na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), ela tem outra referência por perto, Michele de Sá Dechoum, a “rainha da invasão biológica”, pontua Ana Maria.
“Enquanto pesquisadora, mulher negra, sertaneja, oriunda de escola pública, filha de agricultores rurais, sinto que são urgentes e necessárias a representação e a visibilidade de mulheres no meio científico. É crucial ter mais mulheres em posições de liderança e em papeis de destaque, não só para servir de modelo para as futuras gerações, mas também para garantir que as pesquisas e as políticas científicas reflitam a diversidade de experiências e perspectivas”, defende Ana Maria, que destaca a complexidade da inserção da mulher no meio científico, tradicionalmente elitista, sexista e racista.
Ainda no nordeste, mas já nos domínios da Mata Atlântica do sul da Bahia, a pesquisadora Janaine Rocha, selecionada em 2019 pelo Bolsas FUNBIO, é outra força feminina na ciência da conservação. Sua pesquisa, já concluída, avaliou os fatores ambientais que influenciam o sequestro de carbono em florestas tropicais.
Para fazer esta análise, Janaine precisou encarar uma intensa agenda de campos em áreas de floresta fechada e teve que driblar o machismo e a insegurança. “Esse é o maior desafio que eu tive, por diversos pontos, machismo dos mateiros, por não dar credibilidade ou acharem que eu não tinha capacidade de realizar as atividades por ser mulher. E a necessidade da presença masculina para segurança de andar em campo”, pontua.
Em um dos campos, por exemplo, ela conta que cruzou com caçadores na floresta, num local isolado e sem sinal. “Com certeza a figura masculina dos dois mateiros que estavam comigo, fizeram eles passarem longe da gente, mas e se fossem somente mulheres?”, questiona a pesquisadora da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC).
Os dados coletados pela bióloga, que também fez parte do Projeto Pesquisa das Espécies Raras e Ameaçadas de Extinção do Sul da Bahia – uma parceria entre o Jardim Botânico de Nova York, o Instituto Floresta Viva, a Universidade Federal do Sul da Bahia e o Herbário do Centro de Pesquisa do Cacau – ajudam a revelar o importante papel das florestas secundárias e sistemas agroflorestais para armazenamento de carbono, em especial num bioma tão destruído quanto a Mata Atlântica.
De uma floresta tropical para outra, a pesquisadora Rayssa Carmo, selecionada na edição de 2022 do programa Bolsas FUNBIO, estuda plantas aquáticas na Amazônia. Em seu mestrado na Universidade Federal do Pará (UFPA), ela buscou entender como o alumínio afeta duas espécies da flora nativa – a salvinia (Salvinia minima) e a aninga (Montrichardia linifera) – e constatou que ambas as plantas conseguem tolerar e absorver altos níveis de alumínio. Isso faz com que elas sejam consideradas boas fitorremediadoras, ou seja, ajudem a filtrar e descontaminar os rios e igarapés amazônicos alterados por metais, explica Rayssa.
A pesquisadora tem como uma das suas maiores referências a professora Thaísa Sala Michelan, especialista em grandes plantas aquáticas na região amazônica. “Além dela, há várias mulheres que também se destacam no cenário científico e que me inspiram a seguir em frente e a buscar novas descobertas, sempre acreditando na importância do nosso papel na ciência”, reforça.
Rayssa acredita que a sororidade é essencial para superar os desafios enfrentados pelas mulheres no espaço científico.
“Recentemente eu estava em campo com cinco pesquisadores, sendo três mulheres e dois homens. Em um dos pontos de coleta, a coordenadora do campo estava sendo questionada a todo momento sobre as metodologias. Incomodada com a situação que se repetia, eu aproveitei uma oportunidade e questionei os coletas sobre a atitude, visto que quando o colega homem sugeria algo, no mesmo instante era executado, mas quando era a responsável pelo trabalho, todos tinham dúvidas e só passava a ser feito depois que as outras colegas mulheres faziam. Desconfortável, porém necessário sempre falarmos da importância de apoiarmos outras colegas quando essas situações ocorrem”, enfatiza a bióloga.
Essa rede de apoio entre as mulheres cientistas é capaz de promover mudanças no ambiente científico, tornando-o mais inclusivo e colaborativo, além de fortalecer a presença feminina na ciência, defende.
As palavras de Rayssa fazem eco entre outras pesquisadoras – e com certeza com muitas outras mulheres. “Acredito que, com persistência e colaboração, podemos avançar significativamente e criar um meio científico justo e equilibrado”, diz Ana Maria Quirino.
Uma coisa é certa, as pesquisas, as vozes, a dedicação e os intelectos dessas e tantas outras mulheres, é uma das grandes forças que movem a ciência no Brasil.