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Elas por elas
Brasil, década de 1970. De Norte a Sul do país, o governo militar abria novas estradas em busca do ‘progresso’. Em Trindade, uma pequena vila de pescadores que fica em Paraty (RJ), os moradores foram surpreendidos na época por uma multinacional que tentou de tudo para instalar um imenso hotel de luxo na região. Quando as máquinas já estavam posicionadas para desviar uma cachoeira, uma mulher fincou os pés na frente do trator para impedir seu avanço. Até hoje a Cachoeira Grande – como é chamada – está lá para contar essa história.
As águas de Trindade são testemunhas das lutas que as mulheres protagonizam naquele território. “Desde antigamente nossos pais e maridos trabalhavam no mar. Às vezes, eles ficavam mais de um mês fora de casa, e eram as mães que cuidavam da roça, dos filhos, da casa”, diz Maria Célia de Oliveira, que tem 74 anos de idade e de Trindade. Conhecida como Dadá, ela viu de perto as primeiras investidas externas contra os moradores locais. “As mulheres aqui tem essa ligação e essa liderança pela terra”, explica.
Não é por acaso, portanto, que o Coletivo de Mulheres de Trindade (CMT) irá participar da gestão do primeiro Mercado Comunitário Caiçara do local, cuja construção tem apoio do Projeto Educação Ambiental e é liderada pela Associação de Barqueiros e Pescadores Tradicionais de Trindade (ABAT). Historicamente mobilizadas pela defesa da cultura caiçara, as mulheres em breve vão dividir com os homens as bancadas do mercado: enquanto eles vendem o peixe, elas beneficiam o pescado – e ainda pretendem comercializar outros produtos artesanais, como pães, geleias, doces etc.
“Vamos aproveitar as partes do peixe que não são vendidas e produzir caldos, salgados e até artesanatos”, conta Priscila de Fátima dos Santos, que também integra o CMT. “Com o apoio do Projeto Educação Ambiental já temos todo o material necessário – fogão, liquidificador, batedeiras, pratos, talheres… E já estamos fazendo várias reuniões para projetar o futuro: quando o espaço ficar pronto, é só colocar a mão na massa”.
A liderança feminina não é exceção nas iniciativas do Projeto Educação Ambiental e Pesquisa Marinha e Pesqueira: nos últimos anos, foram inúmeras as atividades apoiadas com mulheres na linha de frente das transformações territoriais. Elas empreendem, fazem ciência, produzem arte e são fundamentais para que a atividade pesqueira funcione no país.
A volta por cima
‘Colocar a mão na massa’ é algo que está no DNA do Coletivo de Mulheres de Trindade. Ainda na década de 1970, diante de agressões físicas, roças queimadas e casas destruídas, a comunidade precisou se organizar: foi naquele período que nasceu a Associação de Moradores de Trindade (AMOT). E a primeira chapa a dirigir a organização era composta inteiramente por mulheres. Maria Célia – a Dadá – era a secretária da associação na época.
Com o tempo, vieram novas lutas, novas vitórias e novas ideias. Com os laços reforçados pelo trabalho coletivo, as trindadeiras conquistaram avanços nas escolas de seus filhos, criaram uma cooperativa informal para produzir pães e bolos e ajudaram a subir no braço a sede da AMOT. Nos últimos anos, porém, a chegada da pandemia acabou enfraquecendo essa antiga integração feminina. Mas quando a COVID-19 começou a dar trégua, veio das mulheres também a iniciativa de recuperar o tempo perdido.
“Nós percebemos que mesmo depois da pandemia muitas mulheres continuaram dentro de casa, adoecendo por questões psicológicas. Daí tivemos a ideia de fazer algumas rodas de conversas e oficinas para trazê-las de volta. Procurei a mulherada que fazia pães e bolos antigamente para propor: ‘e se a gente reerguer a cooperativa das mulheres?’”, conta Priscila de Fátima. “E elas toparam”.
Com a divulgação boca a boca na comunidade, as mulheres sacudiram a poeira e voltaram a se encontrar com frequência. E a produção não ficou apenas no pão e no bolo: Tem quem faça artesanato. Quem mexa com tecido, costura e crochê. E tem aquelas que gostam de pintura e teatro. É dessa mistura de talentos que nasce o Coletivo de Mulheres de Trindade.
Mas é da cozinha que sai o carro-chefe: os quitutes formam hoje o que elas batizaram de Café Caiçara. E cada vez mais aumenta a clientela que quer conhecer essas delícias. “Voltamos com tudo!”, comemora Dadá. “Estamos produzindo pão de cebola, de beterraba, de abóbora, além de levar batata doce, banana da terra, bolinho de banana… Nosso Café Caiçara é lindo! Estamos recebendo vários convites. Já fomos para Angra dos Reis, Mangaratiba, Ilha Grande, Ponta Negra”, lista ela, orgulhosa.
E logo essa produção culinária chega ao Mercado Comunitário, que tem previsão de inaugurar em breve. Mais uma vez as mulheres de Trindade fazem história. “A gente enfrenta muitas batalhas, é cansativo”, diz Dadá. “Mas hoje eu me sinto muito realizada. Nós somos desta terra. E é por isso que lutamos por ela”.