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Em parceria inédita, Natura, FUNBIO e VERT lançam um mecanismo de financiamento híbrido para apoiar organizações e famílias agroextrativistas
“Isso é histórico!”
Foi assim, com apenas três palavras, que o extrativista Antônio Marcos Portilho Dias resumiu o Mecanismo de Financiamento Amazônia Viva. Presidente da Cooperativa Agrícola Resistência de Cametá (CART), no Pará, Antônio conta que em 29 anos de existência, é a primeira vez que a cooperativa teve acesso a uma linha de crédito.
“Todas as vezes que tentamos negociar com algum banco fomos barrados na burocracia. Ou nos diziam que não havia linha de crédito específica para nosso perfil, ou nos pediam um monte de documentação que não temos”, relembra ele. Mas desta vez, os caminhos estavam abertos: com rapidez e sem grandes complicações entre o final de 2023 e início de 2024 a CART obteve um financiamento total de R$ 250 mil, com juros mais baixos dos que os praticados pelo mercado. Um recurso providencial para que a organização e seus associados conseguissem produzir, beneficiar e comercializar toneladas de murumuru, andiroba, patauá e tucumã.
Relações de longa data
Não é de hoje que a Natura está presente na Amazônia: são mais de 20 anos atuando na região. No início dos anos 2000, pouco se falava em cadeias da sociobiodiversidade. A empresa, então, teve que ir aprendendo para conseguir construir confiança e consolidar relações duradouras com as comunidades. Afinal, a empresa de cosméticos nunca pretendeu estar ali como simples compradora de matéria-prima para seus produtos: desde que decidiu voltar os olhos para a região, passou a investir em pesquisas e no fortalecimento das comunidades parceiras.
“As coisas precisam caminhar juntas – não adianta alavancar uma cadeia de produção se todo o entorno tem questões sociais e ambientais”, diz Priscila Matta, uma das idealizadoras do Mecanismo Amazônia Viva e gerente sênior de Sustentabilidade da Natura. “A partir das demandas que as comunidades apresentavam, entendemos que deveríamos ter uma visão mais ampla, voltada para o território”.
Foi por meio desses diálogos continuados que as dificuldades locais passaram a ficar mais evidentes. “O Mecanismo Amazônia Viva surgiu deste olhar: quais são os gargalos que a gente vê, que a gente ouve, que as comunidades vivenciam? E a questão do crédito sempre esteve presente: é um gargalo histórico”, pontua Priscila.
Presidente do Memorial Chico Mendes – uma organização que presta assessoria técnica ao movimento social dos extrativistas –, Adevaldo Dias afirma que mesmo as ofertas públicas de financiamento não costumam chegar às famílias com quem eles trabalham. “As opções que existem não estão formatadas para atender a este público. Se para a agricultura familiar – que frequentemente está mais próxima dos centros urbanos – já é difícil acessar crédito, imagine para o extrativista, que está no meio da floresta”, diz.
“Um pacote completo”
Geralmente organizadas em cooperativas ou associações, grande parte das comunidades agroextrativistas na Amazônia trabalha de acordo com a sazonalidade das matérias-primas disponíveis em seus territórios. Quando chega o momento de uma safra, milhares de famílias percorrem a floresta por alguns meses para coletar o açaí, a castanha, o murumuru e tantos outros produtos da sociobiodiversidade.
Idealmente, esta produção é vendida para a própria cooperativa ou associação da qual fazem parte, onde o produto pode ser revendido em quantidades maiores para diferentes mercados. Mas para conseguir viabilizar e absorver toda essa produção, as organizações precisam ter dinheiro em caixa – ou o tão falado capital de giro.
É aí que entra a importância do crédito: caso a cooperativa não tenha recursos em mãos no início da safra anual para pagar com antecedência a logística do produtor e para comprar a matéria-prima que ele irá entregar ao final da safra, há um grande risco de o extrativista ou agricultor familiar vender sua produção para algum atravessador – que geralmente paga um valor bem abaixo do justo – ou mesmo de desistir de sua atividade tradicional.
Por isso, “capital de giro” é uma palavra-chave para o funcionamento das cooperativas e associações que atuam com extrativismo na Amazônia. “Sem dinheiro, ninguém consegue fazer nada”, resume Sandra Soares Amud, presidente da Associação de Produtores e Beneficiadores Agroextrativistas de Beruri (Assoab), no Amazonas.
Mas tão importante quanto ter recursos é saber lidar com eles. E este também é um dos gargalos constantemente apontados pelas comunidades. Afinal, para operar suas diferentes cadeias de produção, muitas vezes as cooperativas e associações precisam fazer a gestão de quantias relevantes para negócios comunitários. “Só uma carreta de cacau hoje está em torno de R$ 2 milhões”, contabiliza Solange Ferreira Feitosa, administradora da Cooperativa Alternativa Mista dos Pequenos Produtores do Alto Xingu (CAMPPAX), no Pará.
Pensando nisso, além de facilitar o acesso a crédito para as organizações agroextrativistas, o Mecanismo Amazônia Viva também optou por direcionar parte dos primeiros recursos do Fundo Facilitador para capacitações e iniciativas de fortalecimento institucional. “Contratamos uma consultoria que está oferecendo assistência técnica voltada à organização financeira, fluxo de caixa, diagnóstico de debilidades internas, entre outras iniciativas. É como um combo: as cooperativas e associações pegam o crédito e se assim desejarem levam junto este apoio”, explica Manuela Muanis, gerente de portfólio do FUNBIO.
Foi o que aconteceu, por exemplo, em Juruena, no Mato Grosso. A Cooperativa de Agricultores do Vale do Amanhecer (COOPAVAM ) acessou um crédito do Mecanismo Amazônia Viva no valor de R$ 500 mil, em dezembro de 2023, para viabilizar a safra da castanha em seu território. Ao mesmo tempo, iniciou a consultoria em gestão financeira. Presidente da COOPAVAM Luzirene Lustosa diz que essa combinação fez toda a diferença.
“A gente sempre teve tudo anotado, mas mesmo assim, eu me sentia perdida. Nunca tinha muita certeza sobre a situação financeira da cooperativa a cada mês. Agora eu sei se estamos no vermelho, o que temos de fazer para melhorar, onde estamos gastando muito. Tudo isso nos dá uma clareza e uma transparência, inclusive para prestar contas ao conselho fiscal e aos cooperados”, diz Luzirene.
“É um pacote completo!”, afirma Sandra Amud, da Assoab: “O mecanismo não só financia as cooperativas e associações, como também dá autonomia para que a gente consiga fazer a gestão dos nossos próprios recursos”, comemora.
Rede forte
Para funcionar desta forma complementar, o Amazônia Viva nasce como um modelo de financiamento híbrido – ou blended finance, em inglês. E opera, portanto, a partir de dois instrumentos financeiros: um de mercado e outro filantrópico, alinhados sob uma mesma governança.
O instrumento de mercado é o Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA). Emitido e gerido por uma Securitizadora da VERT , esta frente é a que oferece empréstimos às cooperativas e associações agroextrativistas, com pouca burocracia e a uma taxa de juros de 8% ao ano – o que equivale a menos de 1% ao mês. Este recurso pode ser utilizado, sobretudo, como capital de giro para safras anuais, como fez a COOPAVAM para viabilizar a produção na última safra da castanha em Juruena (MT). Até o momento foi concedido R$ 5,5 milhões de crédito para as cooperativas e associações agroextrativistas via Mecanismo.
Paralelamente ao crédito, o mecanismo também criou o Fundo Facilitador (ECF). Com recursos de doação e sob gestão do FUNBIO, este é o instrumento que investe na capacitação, na estruturação e no fortalecimento das organizações extrativistas, de suas cadeias produtivas e de seus territórios.
Além da consultoria em gestão financeira que já está em andamento, em breve o ECF irá oferecer mentoria na elaboração de projetos e abrir editais para que as cooperativas e associações proponham iniciativas de melhorias dentro de suas próprias realidades. Com um total de R$ 8,7 milhões já disponíveis, os desembolsos do Fundo Facilitador terão como guias três linhas de ação: Sociobioeconomia Amazônica, Clima e Natureza, e Vida Digna.
Funcionando desde dezembro de 2023 e atualmente em fase piloto, o Mecanismo Amazônia Viva começou a operar com investimentos da própria Natura, da Good Energies Foundation e do Fundo Vale. Nesta etapa inicial, poderão ser contempladas pelo programa as 41 cooperativas e associações da Amazônia que já têm relacionamento com a empresa de cosméticos. Para dar mais segurança ao negócio, reduzir riscos e atrair novos investidores, as organizações participantes do CRA tem previsão de venda da safra para a Natura, fechando assim um ciclo virtuoso que começa no crédito, passa por investimentos estruturantes e garante o acesso ao mercado. “O mecanismo é uma inovação financeira feita a muitas mãos, e com muita dedicação. Esperamos que ele sirva de inspiração para o mercado”, diz Martha de Sá, co-fundadora da Vert. E pelo visto, isso já está acontecendo. Ainda em 2023, o mecanismo foi selecionado em um edital do Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES) voltado a iniciativas de blended finance. O Global Environment Facility (GEF) também já decidiu investir no projeto, e promete destinar até o ano de 2025 cerca de USD 6,2 milhões à iniciativa (o equivalente a mais de R$ 30 milhões).
A previsão é que todos esses recursos sejam utilizados pelos próximos oito anos, impactando mais de 10 mil famílias agroextrativistas e contribuindo para a conservação e regeneração de aproximadamente 3 milhões de hectares na Amazônia.
Para manter de pé todo este aparato, o mecanismo tem como principal instrumento de governança um Conselho Deliberativo. Além de representantes da Natura, do FUNBIO, da VERT e de investidores, há duas cadeiras permanentes para que lideranças das comunidades agroextrativistas levem os anseios dos territórios para as tomadas de decisões. Atualmente, quem ocupa este espaço é a presidente da Associação de Produtores e Beneficiadores Agroextrativistas de Beruri (Assoab), Sandra Amud, e o presidente do Memorial Chico Mendes, Adevaldo Dias.
“Como mulher, eu estou muito feliz de representar as comunidades no Conselho. É uma oportunidade e uma responsabilidade muito grandes. Espero contribuir para que o mecanismo cresça alinhado com a realidade dos territórios e das nossas cadeias produtivas”, diz Sandra.
Para seu pouquíssimo tempo de vida, o Mecanismo Amazônia Viva já vem alcançando grandes conquistas. E certamente um dos segredos desses passos largos é o fato de que o projeto não vem sendo construído sozinho pelos membros fundadores para as comunidades: vem sendo construído junto com elas. “O mecanismo vem no momento certo e com a estratégia certa. Minha expectativa é que daqui a algum tempo isso possa se expandir para outras organizações e territórios”, diz Adevaldo, satisfeito com os novos caminhos que despontam no horizonte: “O projeto vem responder a necessidades reais e históricas dos extrativistas da Amazônia”