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De geração em geração: uma pesquisa sobre genética, muriquis e família
Há famílias em que o amor pela ciência é passado de geração em geração. Foi assim que a bióloga Amanda Alves de Melo herdou a paixão pela Mata Atlântica, pela vida científica e pelos muriquis. Filha de dois cientistas que trabalham com o maior primata das Américas, não poderia ser diferente. “Desde pequena eu convivia com a pesquisa e com os muriquis. Eu sempre estava participando e acompanhando os eventos, os avanços da pesquisa e convivendo com outras pessoas que trabalham com os muriquis e fui me envolvendo com isso”, lembra Amanda, bolsista do ciclo de 2022 do programa Bolsas FUNBIO – Conservando o Futuro para realizar uma pesquisa sobre a genética dos muriquis, vital para conservação e manejo da espécie.
A bióloga, atualmente em sua pesquisa de doutorado na Universidade Federal de Goiás (UFG), deixa claro que quando chegou a hora de escolher uma carreira, seus pais nunca exigiram que ela seguisse seus passos. “Mas o gosto pela área de biológicas estava lá”, conta. Na vida acadêmica, começou a se encantar – e se especializar – pela genética e como esta poderia ser uma ferramenta importante para conservação de espécies ameaçadas.
“E quando eu estava no final do mestrado, sem saber ainda exatamente o que estudar no doutorado, meu pai disse que eles estavam precisando de alguém para ajudar nas decisões de manejo dos muriquis com o estudo genético como embasamento”, explica Amanda. Seu pai, Fabiano Melo, faz parte da equipe do Muriqui Instituto de Biodiversidade (MIB), onde trabalha com a conservação dos muriquis-do-norte (Brachyteles hypoxanthus).
“Aí eu estava feita, trabalhando com o que eu sempre admirei muito – os muriquis –, estudando o que eu adoro – a genética – e com uma pessoa que é referência na área da conservação e minha grande inspiração: meu pai”, fala orgulhosa Amanda. “Desde então estamos trabalhando juntos e com uma equipe muito grande para tentar ajudar os muriquis”.
Os muriquis-do-norte ocorrem apenas na Mata Atlântica, com as principais populações nos estados de Minas Gerais e Espírito Santo. A espécie, classificada como Criticamente Em Perigo de extinção na lista nacional, tem como principal ameaça a perda e fragmentação das florestas de que precisa para sobreviver.
Além do impacto direto na redução do habitat, o desmatamento causa ainda o isolamento das populações de muriquis, o que no longo prazo traz uma ameaça invisível: a perda da diversidade genética.
“Existem muitas populações de muriqui que nunca foram estudadas do ponto de vista genético e algumas que até foram, mas com uma amostragem baixa. Então hoje o nosso principal objetivo é levantar um conhecimento básico sobre a genética de algumas populações de muriqui-do-norte que nunca foram estudadas e aumentar o conhecimento sobre algumas que foram pouco exploradas”, aponta Amanda.
Com esses dados em mãos é possível entender a diversidade genética da espécie e das diferentes populações de muriqui; assim como verificar evidências de endogamia (reprodução entre membros da mesma família, o que pode deixar animais mais vulneráveis a doenças) e relações de parentesco entre os indivíduos das populações; e identificar fluxos de troca genética entre grupos e populações.
“Com essas informações iremos conseguir auxiliar os outros pesquisadores da espécie sobre quais populações têm mais urgência para conservação e quais populações podem ter troca de indivíduos (manejo) baseado na composição e similaridade genética entre elas”, explica.
Para coletar as amostras genéticas deste macaco enorme e ameaçado, que vive no dossel da floresta, Amanda decidiu olhar para o solo em busca de uma fonte abundante e acessível de material genético: as fezes, das quais é possível extrair o DNA através das células intestinais liberadas no cocô. Com um aroma particular de canela, as fezes dos muriquis são famosas aliadas dos pesquisadores da espécie e uma forma não-invasiva de conhecer melhor este primata.
A bióloga foi a campo e contou com a ajuda de pesquisadores parceiros que trabalham em diferentes localidades para tentar reunir o maior número possível de amostras de diferentes grupos de muriquis.
“Fiz campanhas pontuais nos locais onde não há pesquisadores acompanhando o grupo diariamente ou mensalmente. Temos muitos projetos de monitoramento contínuo parceiros que coletaram as amostras e me enviaram. No campo, a ideia principal era encontrar os animais ou pelo menos vestígios deles para depois tentar encontrar as fezes. Utilizamos do conhecimento dos animais na região, da conversa com os locais e de tecnologias como playback e drones com câmeras termais para encontrá-los”, detalha a pesquisadora.
O saldo desse esforço coletivo foi um total de 330 amostras de muriquis-do-norte e incluiu ainda 80 amostras do também ameaçado muriqui-do-sul (Brachyteles arachnoides).
“O Bolsas FUNBIO está me permitindo analisar todas essas amostras de muriqui. Eu com certeza não teria capacidade de fazer o maior estudo genético das populações de muriquis hoje e analisar as mais de 400 amostras se não fosse por esse apoio”, reforça a bióloga.
A pesquisa agora está na reta final, com a análise das amostras. Alguns resultados preliminares, entretanto, já começam a despontar, revelando as populações de muriquis com maior representatividade da diversidade genética e aquelas com sequências genéticas únicas.
No caso do muriqui-do-norte, o destaque são as populações mineiras da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Feliciano Miguel Abdala, em Caratinga, e da Reserva Biológica da Mata Escura, no vale do Jequitinhonha. Ambas com genes exclusivos e grande diversidade genética. Do outro lado da balança, a população da RPPN Mata do Sossego, no município de Simonésia, apresenta sinais preocupantes de endogamia e pode ser prioritária para ações de manejo.
Enquanto avança nas análises, Amanda tem outro grande projeto em andamento: a maternidade. Durante a gravidez, a bióloga concilia as demandas da pesquisa enquanto, ainda da barriga, seu bebê já vai aprendendo, como ela foi ensinada um dia, a amar a ciência e os muriquis.